quarta-feira, 19 de maio de 2010

"Cântico Negro"

Vem por aqui
Dizem alguns, com olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me diziam:
"Vem... vem por aqui"
Eu olho-os com olhos lassos
Há nos meus olhos ironias e cansaços
E eu cruzo os braços
E nunca vou por aí...
A minha glória é essa:
É criar desumanidade
É não acompanhar ninguém
Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre e a minha mãe
Não
Eu não vou por aí
Eu só vou por onde me levam
Os meus próprios passos
Se ao que busco saber
E nenhum de vós respondes
Porque me repetís:
"Vem... vem por aqui?"
Eu prefiro escorregar nos becos lamacentos
Redemoinhar aos ventos
Feito farrapos
Arrastar os pés sangrentos
A ir por aí...
Se vim ao mundo foi somente
Para desflorar florestas virgens
E desenhar os meus próprios pés
Na areia inexplorada
E o mais que faço não vale nada
Como pois, sereis vós que...
Me dareis machados, ferramentas e coragem?
Para derrubar os meus obstáculos
Corre nas vossas veias o sangue velho dos avós
E vós amais o que é fácil
Eu amo o longe e a miragem
Eu amo os abismos, as torrentes, os desertos
Ide! Tendes estradas, tendes tratados,
Tendes filósofos, tendes sábios...
Eu tenho a minha loucura!
E levanto-a como um facho
A arder na noite escura
E eu sinto espuma e sangue
E cântico nos lábios
Deus e o Diabo é que me guiam
E mais ninguém
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe
Mas eu, que nunca principío
Nem acabo
Eu nasci do amor que há
Entre Deus e o Diabo
Áh, que ninguém me dê piadosas intênções
Que ninguém me peça definições
Ninguém me diga:
"Vem por aqui"
A minha vida é um vendaval
Que se soltou
É uma onda que se alevanta
É um átomo a mais, que se animou...
Eu não sei por onde vou...
Eu não sei para onde vou...
Mas sei...
Que não vou por aí !!!

 - José Régio
Foi por vontade de Deus!».

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